Parece uma eternidade, mas a Covid-19 é conhecida pela humanidade há apenas sete meses. E apesar de todo o estrago que tem feito no planeta, muito sobre a doença ainda é desconhecido pela ciência, mesmo que praticamente todos os esforços científicos da saúde tenham sido direcionados para isso.
Um ponto que tem intrigado os cientistas é a questão da imunidade. O senso comum indicaria que, depois de uma pessoa contrair o coronavírus e se curar, seu organismo já teria os anticorpos para isso. Na vida real, no entanto, as coisas não são tão claras assim.
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A seguir vamos discutir alguns dos mistérios sobre a imunidade da Covid-19, mas não espere respostas conclusivas. Especialistas do mundo inteiro ainda estão batalhando para tentar ter uma solução para essa questão, e a ainda pode levar um tempo para que possamos cravar alguma resposta.
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Por quanto tempo somos imunes?
Talvez esse seja o grande mistério relacionado à Covid-19 até o momento. No início do surto, quando ele ainda se concentrava em países asiáticos, começaram a surgir relatos de pessoas que foram testadas com resultado positivo para o vírus mesmo após terem se curado e dispensados do hospital.
Isso criou a primeira pulga atrás da orelha da comunidade científica. Será que não havia imunidade para os curados? Será que era possível contrair o vírus novamente tão rapidamente?
Felizmente, essas suspeitas se desfizeram rapidamente. Quando os casos foram investigados mais a fundo, percebeu-se que os testes estavam detectando resíduos do vírus, mas já incapaz de causar danos ao organismo ou se propagar para outras pessoas. Assim, chegamos à marca de sete meses sem reinfecções, o que é um bom sinal, mas que não comprova absolutamente nada.
Já um indício preocupante veio de um estudo chinês publicado na revista Nature. Ele indicou que alguns anticorpos produzidos com a infecção, do tipo IgC, podem passar a ser indetectáveis no sangue depois de três meses. A perda parece ter sido ainda mais acentuada entre os pacientes assintomáticos, com 40% do grupo analisado ter perdido completamente os anticorpos após o período, contra 13% dos sintomáticos.
No entanto, o fato de a pesquisa ser muito pequena, acompanhando um grupo muito restrito de pacientes, limita a possibilidade de inferir conclusões sobre a queda nas taxas de imunidade da doença com o tempo. Até porque os anticorpos são apenas um dos fatores que determinam a proteção do corpo contra uma nova infecção.
As diferentes respostas do corpo
É importante apontar que os anticorpos presentes no organismo não são a única forma de o corpo humano se proteger. Eles são a linha de frente no combate ao vírus, mas sua ausência não significa que seu organismo esteja vulnerável a uma nova infecção.
Primeiro, é importante entender o que é um anticorpo e como ele age sobre o vírus. Imagine um “Y”; esse é o seu anticorpo. As duas “perninhas” menores da letra são variáveis, e mudam conforme o antígeno que se tenta combater, então o Sars-Cov-2 precisa de anticorpos específicos para que seja neutralizado.
No caso da Covid-19, o “Y” é usado para ligar-se à proteína “spike”, que dá ao coronavírus o seu formato espinhoso. Ao fazer essa conexão, o organismo impede que o vírus se ligue aos receptores ACE2 das suas células, neutralizando sua ação e impedindo a infecção. Posteriormente, a “perninha” maior do “Y” permite que o vírus seja fagocitado em segurança pelo sistema imunológico, eliminando a ameaça.
No entanto, a perda de anticorpos com o tempo é um processo natural, que ocorre após algum tempo de uma infecção, mas o corpo humano conta com outras formas de se proteger contra o vírus.
Como explica a Andrea Moreno, imunologista e professora de Ciências Biológicas da PUC-PR, o sistema imunológico humano é complexo e mais inteligente do que isso. Mesmo com a perda dos anticorpos, o organismo desenvolve uma espécie de memória contra um antígeno (no caso, o coronavírus), que permite a criação dos anticorpos em caso de uma nova exposição.
Além disso, também existem outras formas de defesa que não dependem de anticorpos. Uma dessas reações é a imunidade celular, no qual o corpo detecta as células que estão infectadas e age para matá-las. Essa reação corta a replicação do vírus na raiz e ajuda a conter a doença.
O que não se sabe é o quão eficazes essas reações serão uma vez que a concentração de anticorpos chegue a um nível muito baixo ou indetectável no corpo de quem já se contaminou. O sistema imunológico será capaz de responder corretamente? É o que cientistas do mundo ainda tentam entender.
Como o Sars-Cov-2 é muito novo para saber exatamente por quanto tempo a imunidade contra ele pode durar, uma opção é olhar para os outros vírus da mesma família. Existem outros tipos de coronavírus, causadores de outras doenças, que já são mais bem documentados e compreendidos pela ciência.
Doenças como a Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e a Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) são causadas por outros coronavírus, respectivamente o Sars-Cov e o Mers-Cov. Estima-se que os anticorpos contra essas doenças mais de um ano, podendo chegar a até três, o que é uma grande disparidade em relação ao que se tem visto com o rápido declínio dos anticorpos contra o Sars-Cov-2, causador da Covid-19.
Marc Lipsitch, infectologista e microbiologista de Harvard, cita em artigo publicado no New York Times um estudo mais radical, de 1990, embora com uma amostra pequena de voluntários, que expôs propositalmente 15 voluntários a um tipo de coronavírus que causa apenas um resfriado; dez delas foram efetivamente infectadas e oito desenvolveram um tipo de resfriado. Todos se recuperaram, mas viram seus níveis de anticorpos declinaram com o tempo. Após um ano, mesmo com concentrações de anticorpos acima do patamar da primeira exposição, alguns dos pacientes foram efetivamente reinfectados quando expostos novamente ao vírus.
Apesar do resultado preocupante, há um lado positivo: nenhum dos reinfectados desenvolveu um resfriado, e o tempo para a eliminação do vírus no organismo foi reduzido, indicando que mesmo com a redução dos anticorpos, o organismo estava pronto para responder ao ataque mais rapidamente do que da primeira vez.
No entanto, não existe um estudo que tenha feito o mesmo processo com a Sars ou a Mers, que são muito mais letais, então não é possível cravar se esse tipo de resposta imunológica é padrão entre os coronavírus ou uma exceção.
Uma outra esperança que tem sido ventilada é a questão da imunidade cruzada. Neste caso, o organismo que já foi infectado por outros tipos de coronavírus causadores de resfriados, pode acabar, por tabela, desenvolvendo uma memória para o combate do Sars-Cov-2, causador da Covid-19. Foi o que um estudo americano percebeu: ao exporem amostras sanguíneas de pessoas que se recuperaram de outros coronavírus em 2015 e 2018 ao Sars-Cov-2, houve uma reação imunológica baseada no que o corpo já conhecia sobre a família de vírus. O estudo aponta que isso pode ser um mecanismo interessante de defesa contra a Covid-19, mas também é necessário que sejam feitos estudos mais aprofundados.
Até vacinas são um mistério
A imunidade por exposição ao vírus não é a única forma de adquirir proteção contra ele. A maior aposta é a vacina, com mais de 130 iniciativas monitoradas pela OMS atualmente e 13 delas em fase de testes em seres humanos. Mesmo assim, elas podem ter seus problemas; também não se sabe se elas serão capazes de fornecer imunidade duradoura.
A vacina de Oxford é a que tem avançado mais rapidamente em testes clínicos, mas ela também tem seus problemas. Primeiro, Pascal Soriot, CEO da farmacêutica AstraZeneca, parceira da universidade, admite que a imunidade pode durar por apenas um ano após a aplicação e que podem ser necessárias duas doses para uma proteção mais firme contra o vírus.
No entanto, também há a questão de que, durante os testes, a vacina não impediu que macacos fossem infectados com o Sars-Cov-2. Todos os macacos vacinados que foram expostos ao vírus efetivamente o contraíram, permitindo sua replicação no trato respiratório. O que a vacina fez foi impedir que a infecção se transformasse em pneumonia, fazendo com que a doença não manifestasse sua versão letal, como já explicou ao Olhar Digital Edécio da Cunha, chefe do Laboratório de Bioquímica do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP, que desenvolve uma vacina brasileira contra a Covid-19, mas o vírus ainda está no ativo no organismo e ainda pode ser passado adiante.
Uma vacina que impeça a manifestação da versão grave da doença tem grande valor, mas não é uma proteção total. O resultado dessa proteção apenas parcial é que a pessoa vacinada pode, potencialmente, contrair o vírus e continuar propagando-o para outras que talvez ainda não tenham recebido a vacina.
A imunidade ‘de rebanho’ e o passaporte imunológico
Tudo que foi dito até agora mostra que ninguém sabe com clareza como o sistema imunológico responde à Covid-19 no médio e no longo prazos. E isso não é uma boa notícia para algumas propostas, como a da imunidade de rebanho.
O conceito prevê que o vírus deixa de circular quando um percentual grande o bastante de uma população é exposta e desenvolve os anticorpos, servindo como “escudo social” que protege as pessoas mais frágeis que têm mais risco. Se em alguns meses depois da infecção, uma pessoa estiver novamente suscetível a contrair a Covid-19 novamente, simplesmente não existe imunidade coletiva; o vírus continuará circulando dentro daquela população indefinidamente.
E isso também vale para uma vacina que não seja capaz de prevenir a propagação do vírus por quem foi vacinado: essas pessoas vacinadas ainda podem levar o vírus até quem está vulnerável, tornando inviável a questão da imunidade coletiva.
Outro conceito que não tem sido recomendado pela Organização Mundial de Saúde é o “passaporte de imunidade”, que daria a quem já foi contaminado mais liberdade para se locomover e trabalhar normalmente. Se você leu tudo o que foi apresentado acima, não é difícil entender o motivo. Não se sabe qual a extensão da imunidade adquirida após o contágio e a cura, então incentivar que pessoas que já se recuperaram saiam às ruas despreocupadas pode expô-las ao risco.