Você provavelmente já cansou de escutar sobre fases 1, 2 e 3 de desenvolvimento de uma vacina para Covid-19, que preveem grupos cada vez maiores de voluntários para atestar sua segurança e, tão importante quanto, a sua eficácia. Mas você sabe como se mede essa eficácia?
Na última semana, as empresas responsáveis por três das pesquisas mais avançadas em imunização contra Covid-19, AstraZeneca, Moderna e Pfizer, revelaram seus protocolos, até então mantidos sob sigilo, como forma de aumentar a transparência e amenizar a desconfiança tanto do público quanto da comunidade científica sobre a metodologia utilizada. O que a divulgação desses protocolos também ajuda a entender é o que é considerado uma “vacina eficaz” na visão dessas empresas.
publicidade
Quais são as métricas?
Começando pela Moderna, que tomou primeiro a decisão de abrir o seu protocolo. A empresa pretende reunir 30 mil voluntários, e 25 mil deles já estão confirmados. Dentro desse cenário, os pesquisadores esperam reunir 151 casos de Covid-19 confirmados entre os voluntários para conseguir entender se a vacina é ou não funcional.
No entanto, esses 151 casos deverão seguir alguns critérios bastante específicos. A empresa só levará em consideração os casos que acontecerem duas semanas após a segunda dose da vacina, que é aplicada um mês após a primeira. A empresa espera alcançar esse número após dez meses de fase 3, mas se reserva a possibilidade de fazer outras análises preliminares com 53 e 106 casos.
Esse total de casos deve ser espalhado entre os dois grupos: o que recebeu o composto ativo e o que recebeu apenas o placebo. É observando a distribuição de casos entre os dois grupos que será possível determinar a eficácia da vacina numericamente. Se 150 pessoas ficarem doentes no grupo placebo e apenas 1 no outro, por exemplo, significa que a vacina tem uma eficácia altíssima. No entanto, a empresa acredita que um percentual menor de eficácia também será aceitável.
Cada análise preliminar tem um patamar de eficácia para declaração de sucesso. No primeiro interim, com 53 casos, os pesquisadores esperam uma eficácia muito alta para que seja possível buscar uma aprovação precoce. Esse patamar mínimo é de 74%, o que significaria que os vacinados têm mais chances de estarem protegidos do que quem não se vacinou; se ele não for atingido, os pesquisadores aguardarão o segundo intervalo, já com um patamar reduzido para 56,5%. Se, novamente, os pesquisadores não chegarem a esses números, aguardarão os 151 casos com uma meta de 50%. O valor é o mínimo para que a vacina seja aprovada pelo Agência de Alimentos e Drogas dos Estados Unidos, que tem um papel similar ao da Anvisa no Brasil.
A vacina desenvolvida pela farmacêutica AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford tem bases similares às da Moderna, como revela o seu protocolo. A pesquisa também levará em conta apenas os voluntários que apresentarem a doença após 15 dias da segunda dose. Os pesquisadores também esperam chegar às conclusões após 150 casos, com apenas um ponto de análise preliminar, com 75 casos acumulados entre os dois grupos. Caso mostre uma eficácia superior a 50% nessa etapa, os cientistas podem declarar o estudo um sucesso.
Já a Pfizer, que desenvolve pesquisa em conjunto com a BioNTech, prevê uma abordagem mais agressiva que as concorrentes, segundo seu protocolo. A empresa considerará casos após 7 dias da segunda dose da vacina, e prevê várias análises preliminares, com o alvo final de 164 casos espalhados entre os dois grupos. No entanto, a companhia levará em conta muitos outros pontos de análise prévia com 32 casos, 62, 92 e 120. Para cada fase, a eficácia observada para declarar sucesso preliminar é de 77%, 68%, 63% e 59% respectivamente. Por fim, no patamar final, a eficácia mínima esperada é de 52%.
Como aponta o químico medicinal Derek Lowe em seu blog na revista Science, o silêncio pode ser um bom indicador de quão bem as pesquisas estão andando. Como os primeiros degraus determinados pelos cientistas são os mais exigentes, é esperado que as empresas anunciem e façam barulho com a revelação de que suas análises preliminares alcançaram os números esperados. Se esses resultados começarem a demorar para serem divulgados, é um sinal de que a vacina tem eficácia reduzida.
O New York Times aponta que há diferentes protocolos para divulgação desses dados relativos a análises preliminares. A Moderna anunciou que publicará os resultados assim que eles estiverem disponíveis, mas a Pfizer disse que só os divulgará se houver evidências de que os experimentos devem ser encerrados, o que vale tanto para o caso de sucesso, quanto para o caso de fracasso.
Não é só olhar os anticorpos?
Desde o início dos testes com humanos, há alguma confusão no tema “eficácia” de uma vacina, em boa parte alimentada pela imprensa. Com base na observação de produção de anticorpos, alguns testes preliminares foram noticiados como prova de que uma fórmula é eficaz, mas o fato é que, sem a fase 3, não se sabe se essa resposta imunológica é realmente protetora. O governo russo, por exemplo, fez alarde com a vacina do Instituto Gamaleya pelo fato de a pesquisa produzir a resposta imune esperada em um grupo pequeno de voluntários.
No entanto, a história e o conhecimento científico mostram que existem respostas imunológicas que simplesmente não são úteis contra uma infecção e ainda há casos de respostas que são mais danosas para o organismo, ajudando a agravar uma infecção. O maior exemplo é o da dengue.
A dengue é causada por quatro variações de um vírus, um flavivírus. O que acontece é que, se o organismo desenvolve imunidade contra uma destas variações, a infecção pelas outras três tende a ser mais grave, com mais risco de desenvolver a forma hemorrágica, por ação do sistema imunológico. Por isso, uma vacina eficaz contra a doença precisaria imunizar contra as quatro cepas de uma só vez.
Esse efeito, conhecido como potencialização dependente de anticorpos (ADE, na sigla em inglês), é bem documentado na ciência, e ocorre quando anticorpos não-neutralizantes se ligam a um vírus e, em vez de anulá-lo, acabam facilitando sua entrada nas células, tornando a infecção mais grave.
Felizmente, pelo que se sabe sobre os coronavírus, não só o da Covid-19, mas também os causadores de doenças como Sars e da Mers, a ADE não parece ser um risco. Ainda assim, é um exemplo de como “resposta imune” induzida por vacina não significa necessariamente proteção contra o vírus. É preciso conferir se essa resposta realmente é capaz de neutralizar o vírus.